Por Régis Moreira*
Quem de nós, em nossos piores pesadelos, poderia imaginar um 2020 com toda sua complexidade?!?! Usei a palavra complexidade para não explicitar o terror necropolítico em que fomos enfiados e vamos sendo empurrados ladeira abaixo pelos desgovernos da morte. O preço que todos pagamos é alto, as vidas que perdemos diante de respostas relapsas de quem dá ombros pro que há de mais raro, que é a vida, e pelos que deveriam zelar por ela, nas condições de representação que lhes foram outorgadas, porém tivemos que conviver com os duros golpes diários de um descuido constante.
Agora estamos no embate da queda de braço para que possamos ter acesso, o mais rápido possível e para todos, à vacina contra o novo coronavírus. A politização dos recursos públicos, pagos com o dinheiro de todos, mal administrados, enfiados em compras superfaturadas de cloroquina, compra dos testes de Covid vencidos sem distribuição, corrupções, desvios, desmontes, compras de cala boca gerais num jogo do toma lá dá cá, escancarado a quem quiser ver, mas nos processos engavetados na mesa dos cúmplices do sistema de destruição geral da nação.
Se for me enveredar por esse caminho, a vontade é de chorar de tristeza diante de todas as mortes diárias, de tudo que gera vida, que esse rolo compressor vem triturando. Mas não quero e nem vou sucumbir aos esperançares da poesia e dos novos dias que acredito que construiremos juntos, pois a vida brota, insiste, resiste, vinga! Vinga, não no sentido da vingança rasteira do destruir o outro, ou da desforra, do desagravar alguém que foi ofendido, atacado. Não no sentido de desafrontar, castigar, punir ou pagar com a mesmo moeda. Mas o vingar aqui, nesta virada de ano, é aquele da semente, da vida, que brota, que cresce, que tem êxito, mesmo diante das adversidades. Vingamos! Como li no livro O Corpo Recusado, do Luiz Cecílio. Como cantei na música do Gilberto Gil:
“Rebento, substantivo abstrato
O ato, a criação, o seu momento
Como uma estrela nova e o seu barato
Que só Deus sabe lá no firmamento
Rebento, tudo que nasce é rebento
Tudo que brota, que vinga, que medra
Rebento raro como flor na pedra
Rebento farto como trigo ao vento”
E vingamos 2020 com nossos encontros, mesmo que remotos, mesmo que distantes fisicamente, tivemos a oportunidade de nos reconhecer e formar redes. Sentir a mão do outro e da outra na nossa mão, e que não estávamos sozinhos, mesmo que confinados. Foi justamente no distanciamento social se deu em alguns casos. Amizades nasceram ou se fortificaram na vingança de 2020, que brotou, como lírios brotam dos brejos, como flores raras nascem das frestas, das rachaduras, de concretos armados, de lugares onde não se esperava nada: medram!
Atravessamos 2020, com muitas perdas… No fluxo contínuo do instante já, como nos ensina Clarice Lispector, em Água Viva. O instante já, que não é mais, porque agora, já não o é, porque o instante já é fugidio, na intensidade do fugaz, do momento que passa, no efêmero do respirar, que exige outra inspiração e outra aspiração e outra e outras… num continuo pulsar, em que tudo vibra, nos corpos que dançam, no bater do coração…
Que bons ventos tragam novos esperançares, novos, novas, outros, tantos, quantos forem necessários, para cura dos males, amor dos dias, um pouco de paz, sorrisos e que as lágrimas, quando vierem, nos purifiquem, mas passem, como tudo, como esses desejos, que cheguem até você, em forma de abraço. Desses tantos que faltaram nesse ano, na sintonia do amor que nos liga, que resiste, que rebenta!
Um novo ano bate à porta: deixe entrar! Celebremos esse ritual de passagem e sigamos, com respeito e reflexão. Há um horizonte a se desvendar a cada manhã. Vinguemos! As ruas nos esperam!
Eu desejo a você, cura para os males
Vacinas pra todos os vírus e virulências
Toda sorte e intensidade
Que nos dias de sol, não falte sombras de árvore
Nos dias frios, não falte edredom e a chama
Se for primavera, flores nos canteiros
E quando o outono chegar, que os pores do sol sejam os mais dourados
Para todos os dias, que não falte um bom livro, uma boa música, aquela poesia e uma ou duas xícaras de café ou chá
Pra todos os dias, que sobre coragem e esperançares
Com ímpeto de nos sabermos vivos e participantes
Com a força dos leões e a leveza dos pássaros
Que possamos tomar as ruas
Nas passeatas, ocupações, protestos e carnavais…
Que estejamos juntos, abraçados, aglomerados!
Que a justiça a seja meta
Que haja alegria, bom humor
E que não falte brio e desejo de outros mundos melhores e possíveis
Quando o dia triste chegar, que não falte colo, nem abraços, nem uma sopa, um vinho, um afago…
Que tenha bons amigos presentes e amores
Que a vida flua, resista em sua plenitude, seja vivível
No mais belo sentido a que você veio a essa existência
Feliz ano novo
Novo todos os dias
Com fé e coragem!
Feliz 2021! Axé! Saravá!
*Régis Moreira, Comunicólogo Social e Gerontólogo, doutor pela ECA (USP) em Ciências da Comunicação, docente do Depto de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina (UEL), onde atua como pesquisador na área de comunicação, envelhecimento e gênero. Pesquisador do Observatório Nacional de Políticas Públicas e Educação em Saúde.